le Temps retrouvé

Todas as contas no chão, os lembretes, os cobertores, travesseiros e almofadas. Os saltos sujos de barro, as roupas que deveriam estar nos cabides, as canetas, porta-retratos, os livros. As fotos, o pó em cima do televisor, os cremes capilares,o rímel.Bilhetes cobrindo as lembranças em papel de foto no mural,embrulhos amassados de presentes, papéis de carta, de balas... tudo fora do lugar.
Quando acordei no domingo a tarde, a semana já havia passado, já haviam passado os abraços, os sorrisos, a lição de casa, o almoço em família. Passou tão transitório como orvalho em vidro de automóvel. Não vi a hora, não via a hora.
E tudo foi vivendo enquanto eu descansava meus olhos em palavras controversas aos meus sentidos e sonhos. Tive que acordar.

Profecias

Rasguei as cartas, esqueci as promessas, enterrei o nosso amor. Não existem mais recordações, nem mágoas, não existem sorrisos ou abraços, não existe nada que me faça parar de voar.Coloquei ponto final onde havia vírgula, da sua voz doce só restaram os ecos de cada grito, dos beijos só a indesejável lembrança do que um dia fez todo sentido, a simetria dos nossos corpos me deu vontade de algo inapropriado, torto, desconexo. Os meus motivos para querer mais, a perfeição das desigualdades... nada restou, de nada adiantou. E cada lágrima que correr pelo meu rosto me trazendo notícias sobre você, será o luto de ainda me lembrar do que passou. Decreto feriado pessoal.

Vítreo

Com a criação mais dura possível, me fez enxergar o mundo da forma simples como ele é, crer sozinha em tudo que é recíproco, na diversidade, me fez assistir sozinha todas minhas quedas e fracassos, aprendi a levantar sem segurar a mão de ninguém.Uma pena não estar lá para ver como eu me virava sozinha, foi lindo o espetáculo.
De tantas palavras que não disse, o que era pra ser  trivial tornou-se uma peleja rotineira, rotineiro como ouvir que é comum, como se fosse habitual não suportar o som dos seus olhos piscando.
Minha formação de liberdade com sua assinatura em Bic azul na linha da direita cai em contradição a tudo que sabe sobre mim, nada.

Sinestesia e escapismo

Passagem só de ida para o paraíso, preciso de uma estadia na Lua, qualquer canto, lugar onde se possa respirar ouvindo a pulsação, e não precisar pensar mais que o suficiente para criar algo útil ou reinventar inutilidades. Quero a canção do Sol nascendo e o calor dos pássaros úmidos, quem sabe uma cabana com folhas de laranjeira na beira do rochedo.
Qualquer canto ou lugar que me tire do comum e da fragilidade e simpatia exagerada dos sorrisos cotidianos, das sílabas frias e bocas manipuladas que me perguntam sobre a vida, qualquer pedaço de vento onde se possa observar sem ser denominado narrador ou espectador.

Rondo do Capitão

A cortina quase se fechando e eu, ansiosa, ainda espero o final feliz onde todos podem se abraçar e ter um sorriso calejado de lutar, mas ainda assim meigo e completo. Mas o toque de cheff é o poder de deixar o público com os planos quase alcançados, vendo ir embora a expectativa, deixando claro aos seus olhos um final trágico, exuberante em lágrimas e gritos histéricos, para que todos saiam da sala se perguntando o motivo da imprudência.
E ainda assim, atravesso a rua esbarrando em vestidos de seda e derrubando chapéus arredondados de abas curtas, sabendo que todo o resto do enredo estava ali e ninguém percebeu. O ato ainda estava no patamar superior e eu, de tão boa atriz, repeti algumas falas como : 'Quanto tempo é necessário pra varrer toda essa tristeza? Para fazer uma faxina neste meu ego tão sujo e esquecido? ' e todos pensaram que fosse meu.

Quando as paralelas se tocam

Te deixo amor enquanto posso, na medida que posso, em troca de uma liberdade recíproca. Não peço, não cobro, sei que tudo esta na medida certa; e vou convivendo com os mesmos beijos, os mesmos olhos, o mesmo abraço, e as mudanças de cada piscar. "Eu sou perfeito pra você." e eu me perguntando se é mesmo perfeito ou se meu gosto abstrato por defeitos é que lhe deixam com este ar de sinceridade.
Você me deixa sorrisos enquanto pode, na medida que pode, em troca de uma liberdade recíproca. Continua sendo meu melhor amigo e tudo continua sendo estranho, como se buscássemos respostas pelo fato de todas as duvidas serem exatamente como precisamos.




"... direis ouvir estrelas ! Certo perdeste o senso ! "
( Olavo Bilac )

Babilônias da desconstrução


Minha vida se resumindo no proposto, no propósito, a face não vista por Cecília Meireles, a lógica de tudo que não me acostumei. A certeza de acordar, de levantar, vestir, comer, andar, dizer. O lado abstrato de viver uma rotina sem propostas ou perspectivas em quatro dimensões, sem dificuldade alguma de planejar o dia seguinte ou perder o sono pensando em algo novo que viveu.
Recordações que voltam a fazer parte de algo tão novo a ponto de parecer real, certezas impróprias de momentos saudosistas, dúvidas não esclarecidas que se marcaram com reticências no fim da página e as multidões de palavras e movimentos desnecessários como a memória anestésica do escuro da sua casa de bonecas.
A sensação de viver contando os segundos para a solidão, tendo que esta se resume em felicidade. Aprender a dar gargalhadas espontâneas forjadas, só para sair da desnecessária explicação da sua vida construída em pretérito perfeito, ou imperfeito, não faz tanta diferença.

Límpido


Que falta me faz a chaleira apitando, falta tão desnecessária quanto correr ao mercado por falta de torradas. Sequer gosto de torradas e não preciso de uma chaleira mas a necessidade de ter o que me falta é tão deficiente que faz querer preencher os vazios, os vazios prescindíveis e supérfluos, que não são feitos para serem preenchidos e sim para deixarem o ar circular e ventilar as artérias do sufoco de saber que não existe mais lugar para absolutamente nada. Preencho cada parte deste todo com um pedaço do que é seu -- o perfume, as camisetas, o sorriso,... -- deixando que a sua mais singela e comum forma de agir me comova ou me surpreenda todos os dias; estranho pensar que me apaixono o tempo todo pelos mesmos movimentos e frases e me encanto por essa sua facilidade de me ter por livre e espontânea vontade.
Você vem com esse jeito singular de ser meio amigo meio amante, meio poeta meio político, me deixando admirada e sem ao menos poder dizer que estou apaixonada em tão pouco tempo.
Irregular demais para nós as declarações de amor, os apelidos de casais no auge da paixão, irregular demais as promessas...
Sendo sincera você reconhece todo meu amor, sem mais, simples e frágil assim.