Reticências.

...e me volta assim, como se nada houvesse ficado entre os espasmos, como se o dito ainda estivesse para ser pronunciado, “o visto pelo não visto” e o duvidoso por tudo que há de certo. Traz a incerteza do que existe em mim e faz o alheio deixar de ser banal, até o que nunca foi. Tira o sorriso que já quase era devaneio, deixa tudo desassossegado.

Era a sorte que nos rondava e ninguém sabia disso. Era o tudo e nós o deixávamos para outras horas, para outros dias, para outras pessoas. O que nos rondava era arisco e perigoso, um jogo de sim ou não, era audacioso apostar nos astros, só à vontade nos cedia ao destino e queríamos sair ilesos. Era incerto, era instável, éramos nós e éramos tudo. Vinha o mundo e deixávamos nos rondar de algo que era bom, mas ao qual nenhum cedia.

Iluminávamos o que nos pertencia com as chamas de uma caixa inteira de fósforos, faltou algo que era essencial. O tempo nos fez límpidos de culpa, mas incapazes de negar que ainda restavam fichas e esperanças. O difícil era arriscar. Cada um queria o mundo e o mundo nos queria em abraços, beijos, olhos, mãos e pernas. Arriscamos os sorrisos em quem não tinha história, por medo de desperdiçar o que sempre nos pareceu certo. E apesar de tudo em comum, ainda éramos dois impares que amavam estar envolvidos em todas as dúvidas. Tudo ia e vinha, como se a própria natureza nos comparasse com o mar e nos fizesse enxergar que não era a hora, que não era tempo de largar os nossos erros para começar algo novo.

Talvez eu nunca saiba o que é certo ou se foi certo tudo que escolhi. Acreditar no destino nunca foi questão de fé, era quase questão de escolha, a escolha que decidiria tudo que seríamos. Eu rezava a meu favor e acreditava que tudo seria certo se fosse nosso, mesmo com tudo isso, lutava contra e a favor do que não existiria entre nenhum outro ser vivo, nem mesmo entre outras forças, mesmo que naturais. Mesmo que continuássemos a ser comparados com, não só as ondas, mas a todo oceano, que arrebenta na costa, violento e incerto, que arrasta tudo que lhe pertence e devolve tudo que lhe foi entregue de bom ou mau grado por saber o que não lhe pertence, mas mantém em si toda calma e leveza, toda paz, todo silencio e toda paciência por ter a certeza que ninguém é capaz de lhe tirar o que os anos lhe fizeram ser.


Sempre novo, o mesmo, novo, de novo e de novo, e eu volto pra você... 

Plagiado

Estava lá na mira, na linha de tiro. Sem fôlego, sem oxigênio, sem esperanças e sem paixão. Não pensava em nada e não lembrava a voz de quem o abençoava.

Traçou a vida para ser médico, virou ambulante.


Queria mais da sua trajetória, queria ter viajado, ter se apaixonado, queria ter bebido e se aventurado, nada fez. Nem sequer conseguia se arrepender, tamanho seu egoísmo e indignação. Só conseguia olhar para quem o estava castigando, seu carrasco, sem roupa, sem rosto, sem identidade alguma, era um vulto que o assombrava, o vulto do seu próprio medo, era o ódio personificado; o ódio de ter a ânsia de ser tudo e acabar sem forças, jogado ao destino. Foi o seu destino, foi a sua escolha. Esperava que a vida lhe trouxesse tudo, virou refém de si mesmo.

Preto e branco

O Sol luzia a casa, cada fresta das janelas era tomada por luz. Era domingo e eu puxava a cadeira até bem próximo à cortina para observar todo aquele gramado verde que chegava até a cerca branca de madeira.


Há anos atrás a casa era nossa, a vista era nossa e podíamos imaginar o nosso futuro além daquela cerca. Era a vida que eu queria. Continuar sentando na varanda para tomar chá no nosso conjunto de xícaras coloridas e jogar fora todas aquelas conversas acumulada durante a semana. Minha alma nunca foi tão leve. Planejávamos um filho para o próximo verão e muita lenha para o próximo inverno, mal sabia eu que o frio daquela estação seria o mais rigoroso e doloroso que a vida aguardava para me entregar de braços abertos.


Você construiu nossas cadeiras para o chá de domingo, cortou madeira e fez a cerca que hoje me deixa presa na lembrança do que vivemos. Nossos pássaros lamentam sua partida e eu lamento minha estabilidade caiada. Hoje não ouso mais sentar na varanda que era nossa, não sei em qual mês estamos e sequer faço questão de trocar minha xícara branca por outra qualquer. Optei por tomar café a tomar saudades.